estranho alívio do fim.
16.06.25
eu tive medo que esse dia chegasse, mas quando finalmente veio, foi como se eu tivesse me tornado uma pena leve, perdida no ar em um campo claro de outono. não havia mais nada a temer perder: eu já havia perdido tudo.
- eu não tenho medo de perder mais nada.
muitas coisas em vida despertam curiosidade. um livro novo, um vizinho misterioso, um filme recém lançado. há uma infinidade de coisas lá fora que podemos descobrir e seguir como se não tivéssemos passado por uma ansiedade quase esmiuçante em análise sobre o que era aquilo. mas é isso que é: uma continuidade de fluxos autônomos que não se desfazem após um erro ocasional e isolado. deveríamos ouvir a vivacidade que a natureza carrega em si. não é como nós, que despencamos a cada batida. poderíamos nos reinventar a cada capítulo, escrever uma nova página e buscar essa infinidade de coisas não conhecidas que a vida carrega por aí.
eu passei tanto tempo com medo. medo de perder, medo de ver tudo desmoronar, de ficar sozinha no espaço silencioso que chega quando não há mais ninguém na sala. medo do escuro que noite projeta com seus galhos amplos de vacuidade.
lembro-me de uma tarde específica, dessas que parecem banais demais para ficarem guardadas no álbum de memórias de alguém, onde as lembranças insistem em repetir numa espécie de moldura de video home sistem. ele estava encostado na porta da cozinha, rindo de alguma besteira que eu disse. a luz do pôr do sol anunciava o fim da tarde ao atravessar o vidro da janela com a lucidez e a velocidade de um raio, mas eu não prestava atenção nisso. eu olhava o sorriso dele. os olhos. pareciam ter um brilho próprio. naqueles poucos minutos eu tive a sensação de que uma vida inteira poderia estar congelada ali, de que um futuro promissor estava na minha frente e que o meu destino feliz conversava diretamente comigo, brincando e rindo como dois velhos amigos. talvez por isso eu tenha me agarrado à ideia de que aquilo nunca poderia acabar. talvez por isso tenha acabado.
claramente eu não estava no meu estado mais lúcido. isso não iria durar muito, mas crescer com isso iria. naquele momento tudo parecia real e eu só queria estar com ele por completo. quando somos pessoas muito sensíveis e sentimentais sofremos mais. sei disso mais do que ninguém. mas pessoas sensíveis e sentimentais guardam lições emocionais com uma rapidez admirável. isso, preciso dizer, é venerável. todo bom mestre é um bom aprendiz primeiro. ninguém que é tão sábio chegou onde está sem antes ter provado da própria ignorância.
a parte curiosa é que por mais que algo se esvaia por entre os dedos como areia dançando no vento, o mundo continua existindo do lado de fora como se nada tivesse acontecido. a sensação se assemelha a um esforço constante de puxar um corda que está prestes a se partir. um jogo de xadrez sem dama, bispo, cavalos ou peões. mas deste lado da história, onde eu escrevo com dedos manchados em tinta escura, carregadas de luto e memórias vividas, existe um lado incompreendido, que busca respostas por linhas não escritas ainda. e, por mais que eu tenha sentido o chão se abrir sob meus pés, eu pude perceber nessa época que a vida se faz onde pode. a clareza chamou o discernimento.
ele era o livro que eu queria reler mil vezes, mesmo sem nunca ter entendido a primeira página. cada silêncio que era plantado entre nós parecia carregar significados e sacrifícios de um amor secreto, alguns testes românticos...mas eram só frieza. cada resposta vaga parecia poesia inacabada. eu estava perdida. me tornei especialista em preencher lacunas. me entreguei a detalhes que hoje me soam de forma muito pequena.
as sardas estavam espalhadas como peças de xadrez no rosto, acompanhando o sorriso, exatamente como flocos de neve. seus cabelos pretos estavam em um desalinho estudado, quase perfeitamente calculado. ele tinha uma camada que eu queria decifrar e adentrar, como um quadro em um museu e uma lente em desfoque. e eu, é claro, preenchia todos os espaços em branco que ele deixava. eu estava escrevendo a história, e como um pássaro distraído, não percebi que só eu estava me esforçando por aquilo. passei dias e noites como um satélite desordenado em torno de um amor que nunca me daria frutos. é um erro tentar mudar as pessoas, o afeto se torna mais pesado, por mais que a princípio achemos que daremos conta do fardo.
às vezes me pergunto quanto de mim ficou naquele tempo. talvez tenha deixado pedaços de identidade nos silêncios dele, ou nas respostas curtas que eu teimava em interpretar como enigmas de um romance cult. hoje vejo que eram só cansaços, desinteresse embalado por minha própria esperança. eu fazia questão de ignorar as placas de aviso, os sinais de fumaça, as ausências disfarçadas de timidez.
engraçado como a gente tenta salvar histórias que nem começaram direito. demorei para entender que reciprocidade não se pede. ela existe ou não. e quando não existe, qualquer tentativa de forçar é como encher um balde furado, uma coreografia solitária em um palco sem luz. houve dias em que eu imaginei finais felizes. me tornei autora de um roteiro que ele sequer ajudava a escrever, mas sabia que estava sendo escrito.
agora eu olho pra tudo isso com uma mistura de melancolia e humor. uma parte de mim quer abraçar aquela versão antiga e dizer: "você não precisava ter se dobrado tanto." a outra parte sorri, da minha inocência, aliviada por ter sobrevivido. há beleza em ter aprendido. existe poesia até mesmo na queda. e hoje, quando passo por lugares que guardam memórias, não sinto mais o peito apertar. não sinto nada, na verdade. só lembro e dou check, como quem diz "verdade, já vim aqui". só uma sensação morta, como quando a gente termina um livro que achava que seria o preferido, mas que no fim, não foi.
e tudo bem. a vida continua me oferecendo novas páginas. dessa vez, juro para mim mesma: vou escrever com mais calma. se eu perder mais alguma história, vou buscar mais papel e escrever de novo. não tenho medo do fim nem do clímax. sou forte como uma rocha.
o que eu temia era o fim e, ironicamente, foi ele que me deu leveza.
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